segunda-feira, 11 de março de 2024

Entrevista: Retrato equilibra psicodelia pop e experimentalismo em “O Enigma de Um Dia”

*Matéria originalmente publicada no site Scream & Yell.
Entre fevereiro e março de 1967, os Beatles e o Pink Floyd foram “vizinhos de porta” dentro do Abbey Road Studios, em Londres. Enquanto “Sgt Pepper ‘s Lonely Hearts Club Band” recebia retoques finais no estúdio dois, do outro lado do corredor o conjunto liderado por Syd Barrett trabalhava em “The Piper At The Gates of Dawn”. Reza a lenda que Paul McCartney visitou diversas vezes as gravações no estúdio três – talvez preocupado se o grupo periférico representaria uma ameaça ao reinado do fab four nas paradas. Especulações à parte, a verdade é que o Floyd gozava de status no underground londrino, com longas apresentações barulhentas no clube UFO e, paralelamente, optou por seguir uma direção bem mais pop e enxuta com o lançamento de seu primeiro single “Arnold Layne”. Segundo o produtor Joe Boyd, “o Floyd costumava tocar uma versão que durava dez minutos, mas quando a gravamos fizemos uma de três minutos”, seguindo uma estratégia do empresário Peter Jenner.

Se para o manager do Pink Floyd essa era uma manobra deliberada para conseguir sucesso comercial, para a Retrato essa receita funciona de maneira instintiva e natural durante o processo de composição e gravação. “Ver um show com a banda improvisando é incrível, mas, às vezes, ouvir isso numa gravação pode cansar. Preferimos deixar uma estrutura de canção que tem um ‘começo, meio e fim’, que seja sucinta e que ainda assim tenha os espaços de improviso para criarmos ao vivo”, opinam Ana Zumpano e Beeau Gomez, a dupla de musicistas fundadora do grupo paulistano. “Isso faz com que as pessoas tenham uma experiência diferente em cada show e as apresentações se tornem únicas”.


Em seu disco de estreia, “O Enigma de Um Dia” (2023), a Retrato apresenta canções curtas embebidas em belas texturas psicodélicas que remetem a essa fase inicial do Pink Floyd, além de Mutantes, 13th Floor Elevators e Soft Machine, mas que também possuem traços de nomes mais recentes como o Broadcast e até mesmo algo do atualmente incensado Bar Italia. Ao vivo, o grupo adiciona algumas jams e experimentações a la Grateful Dead e Velvet Underground ao seu som, com Elisa Moos na segunda guitarra, Victor José (Antiprisma) no baixo e as participações selvagens de John Di Lallo nos synths e noises. O resultado é uma atmosfera sonora que deve bastante à década de 1960 e aponta para o shoegaze e lo-fi de bandas noventistas.

“O Enigma de Um Dia” foi gravado utilizando um processo híbrido entre equipamentos analógicos e digitais, durante aproximadamente um ano no Estúdio Memória (São Paulo, SP) e lançado em dezembro de 2023 pelo selo Transfusão Noise Records – do músico carioca Lê Almeida (Oruã), que assina a mixagem e colabora na faixa “Interlúdio”, juntamente com Bigu Medine. A masterização ficou a cargo de João Casaes (Oruã e Echo Upstairs). A sonoridade final do registro também conferiu um certo efeito de mistério sobre as letras, que apesar de serem em português, permanecem herméticas ao citar misticismo, passagens surrealistas e momentos lisérgicos. Esse forte caráter imagético não é acidental, visto que tanto Beeau quanto Ana também são artistas visuais. “Tentamos trazer essas imagens de forma que não seja um discurso literal, e sim algo que abrirá uma nova perspectiva em quem ouvir a canção”, justificam.

No papo abaixo, Ana e Beeau contam ao Scream & Yell um pouco como foi o processo de gravação do debut do grupo, como funcionam as apresentações ao vivo e o sobre o que esperar para o próximo trabalho da banda – as novas canções já foram incorporadas ao repertório dos shows.

“O Enigma de Um Dia” tem uma sonoridade que remete bastante a bandas psicodélicas dos anos 1960. Quais seriam as inspirações (sendo bandas ou não) diretas disso? Essas gravações foram feitas de forma analógica ou digital?
Acho que tudo que estava envolvido nessa época é uma inspiração para nós: som, literatura, poesia, pintura. Além de todes da Retrato ouvirem muito qualquer tipo de música desse período, a forma como as bandas costumavam gravar seus discos, os instrumentos utilizados, técnicas e equipamentos também servem muito de inspiração. O nosso som vem como uma consequência disso tudo; a sonoridade da época tem uma característica que vem de uma limitação técnica para se gravar, o que hoje conseguimos enxergar como estética sonora para chegar em texturas e timbres que remetem àquela sonoridade. Parte disso vem da escolha de gravarmos o disco utilizando equipamentos analógicos. O processo como um todo é totalmente híbrido, captamos a maior parte da gravação no analógico, mas depois vai tudo para o computador. O que de certa forma não muda muito, pois o som já chega pronto. Cada equipamento que passamos o som dá uma textura e característica diferentes, deixa a gravação mais “suja”, quente, lo-fi. A etapa do computador ajudou, pois dessa forma conseguimos enviar os arquivos de gravação para o Lê Almeida mixar, e ele estava em uma tour com o Oruã nos Estados Unidos e Europa e conseguiu fazer a mix na estrada, no tempo livre entre os shows.

Geralmente bandas psicodélicas fazem longas jams e esticam suas músicas, mas a maioria das faixas de “O Enigma de Um Dia” é curta e não chega a quatro minutos (descontando a última, “Véu”) e o álbum todo passa bem pouco dos 30 minutos. Isso foi uma decisão deliberada ou aconteceu de forma espontânea?
Achamos um tanto chato as bandas psicodélicas “cansadas”, que às vezes ficam improvisando longos períodos e o som parece não ir para lugar nenhum. Quase todas as canções da Retrato têm um espaço para improviso, nunca tocamos igual e gostamos de deixar esse espaço de criação para os shows ao vivo. O improviso tem um caráter do momento, ver um show com a banda improvisando é incrível, mas, às vezes, ouvir isso numa gravação pode cansar. Preferimos deixar uma estrutura de canção que tem um “começo, meio e fim”, que seja sucinta e que ainda sim tenha os espaços de improviso para criarmos ao vivo. Isso faz com que as pessoas tenham uma experiência diferente em cada show e as apresentações se tornem únicas.

Lendo as letras, achei que a parte literal segue uma abordagem nem tão direta, com uso de imagens meio surrealistas, lisérgicas e até mesmo algo de misticismo. Quem é o responsável pelas letras? Como elas surgiram?
As letras são escritas majoritariamente pelo Beeau e a Ana sempre traz algum complemento para fecharmos a canção. Às vezes a Ana traz um riff, uma melodia, uma frase ou refrão e o restante se desenvolve a partir daí. Mas as canções sempre se dão pela dupla. Ambos gostam muito de poesia e literatura, principalmente as que se podem criar múltiplas imagens a partir de diferentes interpretações. Tentamos trazer essas imagens de forma que não seja um discurso literal, e sim algo que abrirá uma nova perspectiva em quem ouvir a canção.

Este álbum de estreia foi concebido inicialmente por Ana e Beeau e depois contou com as contribuições de Elisa Moos, Victor José e John Di Lallo. A ideia no estúdio é sempre centralizar o processo de composição na dupla de vocalistas ou as próximas obras devem contar com maior participação da banda completa?
Existem variadas formas de se criar um som ou canção que gostamos de explorar. Desde gravar vários instrumentos sozinhos, tocar ao vivo com a banda ou gravar loops em fita cassete. Nós (Ana e Beeau) gravamos uma demo do que viria a ser “O Enigma de Um Dia” a partir de um ensaio entre os dois, com bateria, guitarra e vozes. Quando Victor e Elisa se juntaram à banda, o disco tinha iniciado suas gravações e eles puderam contribuir com seus respectivos instrumentos em todas as faixas. Durante o processo, a John também começou a tocar com a gente e gravou os synths na fase final de produção do disco. Para o próximo disco, já temos boa parte do material novo gravado com a banda tocando as faixas ao vivo em estúdio. Mesmo as faixas que são loops ou colagens sonoras, elas fazem parte do material ao vivo que fomos gravando durante os ensaios com essa formação.

Como foi que aconteceu essa participação do Lê Almeida e Bigu Medine na faixa 5, “Interlúdio”?
Temos uma relação que vai além da música. Sempre quando o pessoal está em São Paulo, eles se hospedam em nossas casas. Gostamos de cozinhar, ouvir discos, tocar. É muito natural a forma como as coisas acontecem. Antes mesmo de gravarmos o disco, o Lê estava acompanhando o processo do nosso lado e se propôs a ajudar com qualquer coisa. O Bigu e o João Casaes (que masterizou o disco) tocam na Echo Upstairs também, então sempre estamos criando algo juntos. Essa faixa surgiu de um improviso, que gravamos com o Bigu na fita cassete. Gravamos outras coisas em cima, mas não tinha como o Lê mixar pois a faixa não tinha seus canais separados. A sugestão foi que o Lê gravasse outras coisas por cima, já que seria uma forma de trabalhar essa música. Ele gravou uns synths e passou novamente pelo toca fita dele, cortando algumas partes e tocando em reverso algumas coisas. Ana, John e Beeau também gravaram algumas faixas do disco solo do Lê, “I Feel In the Sky“. Essa colaboração é mútua e vem como consequência da nossa relação. Com certeza teremos mais dessas trocas nos próximos trabalhos.

Além da Retrato, vocês têm outros projetos musicais, como Antiprisma, Echo Upstairs, etc. Como vocês fazem para tocar tudo isso? Tem algum planejamento de tempo e ensaios para cada banda ou vão apenas seguindo o fluxo para ver no que dá?
Na maioria das vezes batemos as agendas para encaixar os compromissos de cada projeto nos momentos livres. Cada projeto tem seu tempo e suas tarefas que precisamos executar. Estamos ensaiando com o Antiprisma para os shows do novo disco que sai agora em 2024 [ouça o primeiro single aqui], estamos gravando um EP novo da Echo Upstairs e ensaiando novas músicas da Retrato, além de tocarmos em projetos ou participações de amigues. Basicamente estamos tocando quando não estamos tocando (risos).

Nos shows vocês já tocam algumas músicas novas. O que vocês acham que elas diferem das do primeiro disco?
Um dos fatos é que as músicas novas são tocadas pela primeira vez nos ensaios com a banda toda, então vamos trabalhando para entender como ela soa ao vivo. As músicas anteriores já tinham uma base de bateria e guitarra gravadas por nós dois, o que de certa forma torna mais fácil você assimilar o som ouvindo a gravação repetidas vezes. Mas dessa forma atual, em cada ensaio a música vai se desenhando aos poucos por cada um até tomar uma forma única.

Quais os próximos passos da Retrato em termos de shows e lançamentos? Devemos esperar um segundo álbum em breve?
Atualmente vamos tocar pelo Brasil até o meio do ano para divulgar “O Enigma de Um Dia”, nesse período teremos o lançamento físico do disco e vamos focar em finalizar o novo álbum para o segundo semestre de 2024.

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Entrevista: E a Terra Nunca Me Pareceu Tão Distante retorna com o EP “Linguagem”

*Matéria originalmente publicada no site Scream & Yell.
Considerada um dos grandes nomes do post-rock brasileiro, a banda paulistana E a Terra Nunca Me Pareceu Tão Distante retornou aos holofotes com “Linguagem” (2023), lançado no final de outubro de forma digital pela Balaclava Records. O EP é o quinto registro do quarteto formado por Lucas Theodoro (guitarra, baixo e sintetizador), Luccas Villela (baixo e guitarra), Luden Viana (guitarra e sintetizador) e Rafael Jonke (bateria) colocando um fim ao hiato de cinco anos desde o bem-sucedido disco “Fundação” (2018), um dos fatores responsáveis por colocar a banda na trilha de festivais como Lollapalooza (SP), Bananada (GO), Sonido (PA) e LeRock Fest (Chile) em 2019.

O EATNMPTD tinha planos de seguir a maré favorável, mas a pandemia veio e se mostrou um obstáculo intransponível. “Nós só voltamos a trabalhar efetivamente quando as coisas melhoraram e estávamos vacinados e esse é um dos motivos pela distância grande entre os lançamentos”, conta Luden. Os últimos anos trouxeram muitas mudanças pessoais e profissionais para os membros do grupo – entre eles o anunciado deslocamento de Luccas Villela para fora do Brasil. “Em dado momento da pandemia estávamos mais preocupados com a saúde psicológica de nós quatro do que com o futuro da banda ou algo do tipo”, afirma Lucas Theodoro. “A gente voltou a fazer música a partir do momento que conseguimos digerir a coisa toda como coletivo”, justifica o músico.

E se esse período de reaprender a se comunicar como banda resultou em um EP intitulado “Linguagem”, não pode ser muita coincidência que a obra traga uma faixa batizada de “Bruce Willis”. Em 2022, o ator norte-americano foi diagnosticado com afasia (uma condição que causa incapacidade de compreender ou formular linguagem devido a danos em partes do cérebro) e, mais tarde, descobriu-se que ele sofre de uma demência frontotemporal. Com uma baita liberdade de licença poética, “Bruce Willis” pode servir como metáfora para o redescobrimento da linguagem entre os músicos após a pandemia, mapeando as quatro faixas em cerca de 20 minutos, começando com uma colagem sonora quase ambient (“Ausente”), passando por mudanças de andamento e dedilhados contemplativos (“Oblívio”) e até mesmo a momentos etéreos reminiscentes de Angelo Badalamenti na trilha de Twin Peaks (no início de “Infamiliar”).

Os preparativos de “Linguagem” duraram quase dois anos, divididos entre a capital paulista (no Estúdio Costella) e retiros no interior do Estado (no Estúdio Sítio Romã), com a banda assumindo a frente total na produção. “Esse tipo de controle técnico e criativo fez com que chegássemos num resultado sonoro que realmente tem a cara de nós quatro” pontua Theodoro, que também assina a engenharia da gravação com Gabriel Arbex (Zander) e Rafael Carvalho. A mixagem ficou a cargo de Gabriel Arbex e a masterização de Fernando Sanches, no Estúdio El Rocha. A capa é assinada pela arquiteta e gravurista Beatriz Carvalho. Em entrevista por e-mail, a banda contou ao Scream & Yell um pouco sobre como foi o processo de composição do novo EP, reflete sobre a cena independente e instrumental no Brasil e também entrega uma ideia dos próximos passos do grupo. Confira o papo na íntegra abaixo.

Existe um hiato de cinco anos entre o “Fundação” e este novo EP. O que rolou com a banda durante esse tempo?
Luden: O “Fundação” e o “Linguagem” passam por situações curiosas e muito diferentes do que esperavam de nós. Na época do disco (“Fundação”) precisávamos de um LP pra dar alguns passos maiores. Tocamos em muitos lugares do Brasil. Tocamos no Lollapalooza. Saímos do país pela primeira vez para tocar. Tínhamos muitos planos pra começar a fazer coisas novas, mas a pandemia veio e brecou tudo. Nós só voltamos a trabalhar efetivamente quando as coisas melhoraram e estávamos vacinados e esse é um dos motivos pela distância grande entre os lançamentos. É curioso ter gente perguntando onde estávamos ou se a banda acabou, quando na realidade nós trabalhamos da maneira mais ética possível com os acontecimentos que todos nós vivemos. Apesar disso acho que foi a primeira vez que me senti calmo com as composições, sem nenhum tipo de pressão externa ou necessidade de cumprir com qualquer coisa exceto nossa vontade de lançar algo que gostássemos.

Theodoro: Esses últimos anos foram de muitas mudanças pessoais e profissionais pra nós quatro, pra além da banda. Em dado momento da pandemia estávamos mais preocupados com a saúde psicológica de nós quatro do que com o futuro da banda ou algo do tipo. A gente voltou a fazer música a partir do momento que conseguimos digerir a coisa toda como coletivo. Apesar das pessoas terem esse olhar de “retomada” da banda, acho que estamos no momento mais saudável da nossa existência e o “Linguagem” é muito fruto disso.

“Fundação” é um disco cheio com dez faixas e o “Linguagem” tem quatro composições, similar aos lançamentos anteriores. O que fez o grupo voltar a esse formato mais enxuto? Existem outras ideias que ficaram de fora deste EP?
Villela: A pandemia fez com que nossas rotinas ficassem desencontradas. Precisávamos trabalhar e tudo isso acabou fazendo a gente ter menos tempo de se encontrar, fazer ensaios e compor. Mesmo assim a urgência de tocar estava lá, todas as vezes que a banda se encontrou, falávamos de fazer músicas novas pra lançar algo novo. O lançamento do EP acabou vindo da vontade de lançar algo depois de muito tempo e, ao mesmo tempo, minha saída do Brasil. Temos várias ideias de som que ficaram de fora, algumas foram desenvolvidas parcialmente, provavelmente ficarão pro próximo álbum. Ideias nesses últimos anos não faltam, tem muita coisa por desenvolver ainda.

Luden: É também um formato que gostamos muito e nos sentimos confortáveis criando dentro dele.

As liner notes do EP afirmam que a bateria foi gravada no Estúdio Sítio Romã no interior de São Paulo e guitarras, baixo e sintetizadores no Estúdio Costella, na capital. Ainda assim, as músicas possuem uma certa vibe de sessões de improviso ao vivo, com uns crescendos e mudanças de ritmo como se os músicos estivessem olhando um para o outro enquanto estão tocando. Como vocês chegaram nesse resultado?
Villela: Não foi muito pensado esse lance de sessão de improviso. Fazemos as coisas de forma muito colaborativa, sempre um vem com uma ideia inicial e depois os outros vão propondo dentro da melodia ou riff proposto, talvez seja isso que dê essa cara de improviso, a música toma corpo meio como colcha de retalho.

Theodoro: Acho que tem muito menos de improviso envolvido no nosso processo de composição do que as pessoas imaginam (risos). Sempre fomos muito regrados em relação à estrutura das músicas e tempo de duração das coisas. Se uma parte de determinada música se repete três vezes é muito provável que em algum momento testamos tocar ela duas vezes e pareceu curta demais e quatro vezes repetitivo demais. Claro que isso é dentro de um processo onde os quatro [integrantes] estão tentando desenvolver suas ideias em cima de algum tema ou algo do tipo. Acho que toda criação tem momentos caóticos (principalmente quando envolve quatro pessoas e muitos instrumentos de fazer barulho), mas a parte que faz com que as nossas músicas tenham uma “cara nossa” é justamente o nosso jeito de lapidar e dar forma a tudo isso.

Rafael: Apesar da maneira como sempre fizemos as composições, que consiste basicamente em desenvolver juntos uma primeira ideia, acho que muito do que se ouve e se sente nesse novo trabalho tem a ver com a forma como nos relacionamos durante o processo, desde que decidimos de fato que gravaríamos novas faixas. Com mais tempo, menos pressão e muito mais diálogo, pudemos criar e dar forma para as ideias, aproveitando ao máximo as nossas criatividades individuais, e também tendo mais cuidado em lapidar cada coisinha pra que chegássemos nesses resultados. Acredito que o que essas músicas proporcionam tem diretamente a ver com as nossas relações como pessoas, com nosso amadurecimento, com as nossas vidas mesmo.

O EP é também o último registro do baixista Luccas Villela em terras brasileiras. Com ele morando fora do país, como vai ficar a formação da banda agora?
Theodoro: Esse ano estamos focados em fechar a primeira parte do ciclo de lançamento do “Linguagem”. Mas temos conversado muito sobre as possibilidades daqui em diante. Não existe ninguém que irá entrar para a banda no lugar dele, mas contamos com alguns amigos que já colaboraram conosco para assumir o baixo nos shows. Em paralelo estamos pensando em colaborações com outros artistas, planos de entrar em estúdio novamente ano que vem, entre outras coisas. Enfim, a banda virou pra nós novamente um porto seguro de criações e possibilidades e estamos tomando nosso tempo pra explorar isso.

O Brasil sempre teve um histórico de grupos instrumentais e nos anos 2010 até ocorreu um certo boom dessa vertente, mas parece que essa cena não está mais tão aquecida. Por exemplo, o festival Produto Instrumental Bruto (que durou 11 anos em São Paulo e teve sua última edição em 2018) não existe mais e vocês até hoje são a única banda instrumental a ter tocado no Lollapalooza, um dos principais eventos musicais do país. Como vocês enxergam tudo isso? A cena instrumental brasileira é renegada ou é apenas mais um reflexo da situação da cena independente em geral?
Luden: Parte do motivo de estarmos aqui hoje creio que tenha sido a influência desse boom de bandas instrumentais na nossa adolescência. Ir em shows do Hurtmold, Constantina, Macaco Bong, Pata de Elefante entre outras criou uma certa mentalidade de que era possível, muito embora a gente nunca tenha imaginado que estaríamos aqui 10 anos depois. No nosso começo a vontade era de tocar, ser uma banda, se divertir fazendo música e nessa lógica começamos a tocar com todo mundo que estava próximo, sem necessariamente tentarmos tocar com outras bandas instrumentais. Com o tempo isso virou algo que buscávamos quando produzíamos nossos próprios eventos: sempre ter a gente e mais uma banda que não fosse instrumental. Nós nunca tentamos fazer parte de uma cena instrumental porque sempre nos encaramos como uma banda e ponto. Nossa inserção nos rolês nunca foi permeada por fazer um tipo a ou b de música e acho que isso nos abriu muito mais portas do que fechou.

Rafael: Pra além de qualquer coisa, é fato que viver na cena independente não é uma tarefa fácil, pra qualquer banda que seja. Mas ainda mais se o seu tipo de som estiver nichado, ou se você fizer com que sua banda fique nichada. Nós vivemos boa parte desse período ‘áureo’ da música instrumental independente, podendo participar também de festivais como o PIB, que davam lugar a essa vertente. E foi justamente na sua última edição, dois anos antes da pandemia. O que eu acho que entra como um dos fatores principais de não só a cena instrumental, como ela como um todo ter sentido drasticamente esse tempo sem poder trabalhar, respeitando limitações e tudo mais. Daqui pra frente eu acho que as coisas podem, sim, voltar a acontecer pra quem quer fazer música dessa forma e de qualquer outra. O Brasil é muito plural e acredito que tenha lugar pra todo mundo.

Até o momento a banda anunciou um único show de “Linguagem” no dia 12 de novembro na Casa Rockambole (SP). Existem mais datas futuras marcadas? E em outras cidades?
Theodoro: Ainda não temos uma agenda de shows. Mas entre os vários planos que temos, voltar a viajar por aí e tocar essas novas músicas pelo Brasil com certeza está na lista.

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Ao vivo: Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo lança novo disco em noite movimentada no Cine Joia

*Matéria originalmente publicada no site Scream & Yell.
fotos de Fernando Yokota.
Responsáveis por um dos álbuns mais falados de 2023, a banda Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo anunciou o show oficial de lançamento de “Música do Esquecimento” em uma noite de domingo (22/10) no Cine Joia, na capital paulistana. Depois de um primeiro disco produzido pela incensada Ana Frango Elétrico em 2021, uma participação no Festival Coala 2023 dividindo o palco no mesmo dia de nomes consagrados como Jorge Ben Jor, Marina Lima, Fernanda Abreu e Letrux e uma mini turnê de divulgação por cidades do sudeste brasileiro, será que um grupo de apenas quatro anos de carreira teria capacidade para lotar uma casa para cerca de mil pessoas?

De fato, pouco antes da abertura do Cine Joia, às 19h, já havia uma fila grande na entrada – talvez resultado da estratégia de liberar um lote surpresa de ingressos mais baratos por um período limitado, três dias antes do evento, mas talvez também pela banda já ter um séquito de fãs respeitável. Dentro do local, o que se observava era uma plateia majoritariamente jovem na faixa dos 20 anos, adolescentes acompanhados dos pais e alguns espectadores acima dos 30 anos, com todos mexendo em seus smartphones enquanto aguardavam o show.
Amigo de Sophia Chablau, Jonnata Doll aceitou a tarefa de abrir a noite com seus Garotos Solventes. Se o artista punk cearense não conquistou um merecido sucesso com os fãs saudosistas da Legião Urbana ao participar da turnê de 30 anos do grupo, apostar em um público bem mais jovem poderia ser o passo mais lógico a seguir. Só restava saber se os ‘Gen Z’s se conectariam com frases como “vamo cheirar cola até me acabar ouvindo punk rock” (da letra de “Cheira Cola”) e temas como a descrição da paisagem viciada de “Vale do Anhangabaú”.

Ao menos durante o show a aceitação se confirmou: a massa presente não mostrou indiferença e pouco a pouco se empolgou com os trejeitos de Jonnata, que subiu ao palco usando na cabeça uma coroa improvisada com pequenas lâmpadas rosa, acompanhado do guitarrista Edson Van Gogh, o baixista Joaquim “Loro Sujo” e o baterista Clayton Martins. A energia de canções protopunk como “Namorada Fantasma”, “Esqueleto” e “Crocodilo” era mesclada com faixas de vibe oitentista como “Edifício Joelma”, “Trabalho Trabalho Trabalho”, “Vai vai”, “Volume Morto” e “Filtra-Me”. Como um pequeno spoiler do que viria a seguir, Sophia Chablau foi convocada ao palco para dividir os vocais de “O Mundo Contra Nós” e, em um momento mais sóbrio, a banda dedicou a música “Pássaro Azul” para o amigo e ex-baterista Felipe Maia, que faleceu no fim de setembro.

Os já tradicionais problemas de som do Cine Joia apareceram – em parte por conta da performance frenética de Jonnata, que várias vezes descia um nível intermediário entre o palco e a plateia e esbarrava no emissor de sinal de seu microfone sem fio, causando ruídos que não botaram tudo a perder graças à coesão da parede sonora da banda. Na sequência final, ao emendar músicas rápidas, a exaltação do vocalista culminou em uma espécie de “autocuecão”, com Jonnata puxando a parte traseira da própria cueca contra suas costas, revelando o tecido totalmente esticado entre as nádegas.

Parecia difícil que qualquer um pudesse superar o que o público havia presenciado nesse show de abertura – tanto para o bem ou para o mal. É verdade que a atração principal sobe ao palco com metade do jogo ganho, pois o público está ali para assistir a performance de encerramento. Só que se a banda de abertura investiu na presença visceral para conquistar o público, a estratégia de Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo foi justamente apostar na contramão disso: a sutileza.
Para esta apresentação, o quarteto original (Sophia Chablau nos vocais e guitarra, Vicente Tassara na guitarra, vocais e teclados, Téo Serson no baixo e Theo Ceccato na bateria e vocais) contou com o reforço de duas backing vocals e Vitor Araújo (produtor de “Música do Esquecimento”) no piano em vários momentos-chave do espetáculo. E essa formação provou estar bem afiada ao longo do show.

O início, com “Minha Mãe É Perfeita”, foi quase como se a banda jogasse uma pista falsa para o que viria a seguir: um noise de pedal introduz notas pesadas na guitarra e o baixo distorcido seguia um riff hardcore que convidava para a maior (talvez única) roda de pogo da noite. “Baby Míssil” apareceu na sequência, mantendo uma linha de guitarra mais melódica e assobiável e um ritmo bem mais aprazível. A partir dali, a porção roqueira da banda diminuiu, cedendo espaço para arranjos de teclados marcantes, dando a oportunidade para que Tassara abusasse de efeitos e texturas bem similares ao que Jonny Greenwood faz no Radiohead.

Mas como um grupo tão novo consegue emendar ao vivo uma sequência de faixas introspectivas como “Qualquer Canção”, “Fora do Meu Quarto” e “As Coisas que Não te Ensinam na Faculdade de Filosofia” e manter a atenção do público tiktoker? A primeira constatação é a personalidade carismática de Sophia Chablau – tanto no palco como em suas poesias melancólicas e frases debochadas. O jeito meio tímido/meio maloqueira de classe média da frontwoman cativa. Em uma comparação bem ridícula e didática, é como se Sophia fosse uma mistura da Mallu Magalhães dos primórdios com uma versão paulistana da marra de Chorão do Charlie Brown Jr. E escrevo isso com a melhor das intenções.

Chablau sabe pedir a participação da plateia, entregando na mão dos fãs para que letras como a de “Idas e Vindas do Amor” sejam entoadas por eles nos momentos certos e com um resultado muito bonito. Ela poderia errar feio e exagerar nas interações (como Dave Grohl cisma em se arriscar, produzindo reações opostas entre o público geral), mas Sophia parece ciente disso e não exagera na dose. Ela também não se leva tão a sério e faz questão de dividir os holofotes com os companheiros de banda; ao longo do show, a vocalista anunciou os autores de outras composições, exaltando os talentos de seus colegas. Nesse quesito, até mesmo o baterista Theo Ceccato teve o seu “momento Ringo Starr” durante “Último Sexo”, assumindo o microfone principal na frente do palco e deixando as baquetas para Sophia.
Além dessa divisão quase marxista das atenções entre os músicos no palco, o show também contou com boas participações de Jonnata Doll (para cantar a curtinha “Neurose”) e Negro Leo, se juntando à gaita de Felipe Vaqueiro (do Tangolo Mangos) para cantar “O Pato Vai ao BRICS” e a já esperada “Quem Vai Apagar a Luz?”. Visivelmente feliz com a resposta favorável do público jovem ao seu ‘som torto e erradaço’, Negro Leo chegou a dizer que “é melhor ser lembrado pelos mais jovens, do que por uma instituição centenária”, fazendo uma alusão à idolatria que a banda paulistana tem com seu trabalho.

O show caminhava para um final sacudido até que um incidente interrompeu a execução do hit indie “Segredo”: um fã decidiu subir na plataforma intermediária entre o palco e a plateia para arriscar um stage dive mal-sucedido, batendo com a cabeça no chão e ficando inconsciente. Ao perceber a situação, a banda parou o show imediatamente, pediu para que o público abrisse espaço e a vocalista chamou a atenção dos bombeiros na casa para atender o rapaz machucado. Preocupados com o ocorrido, o grupo anunciou que faria uma pausa na apresentação para checar se o fã estava bem.
Cerca de 15 minutos depois os músicos voltaram e anunciaram que o stage diver azarado estava bem e encerrariam o show com mais quatro músicas – incluindo números que não estavam previstos, como o samba “Deus Tesão” improvisado na guitarra. A dançante “Debaixo do Pano” até tentou reparar os ânimos do público, mas a própria Sophia Chablau ainda parecia um pouco atordoada pela queda do fã minutos antes. Na beira desse anticlímax, o espetáculo chegou a um fim ainda morno com “Delícia/Luxúria”.

Apesar do incidente, a impressão que fica é a de que Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo é um grupo competente no palco e merece a atenção recebida – por mais que não tenha abarrotado o Cine Joia, 700 pessoas num domingo à noite deve ser comemorado. O setlist com grandes sequências de músicas absortas intercaladas com ecos de shoegaze pode deixar os admiradores de rock tradicional confusos e até mesmo entediados durante uma apresentação da banda, mas essa escolha é deliberada e funciona muito bem com seus seguidores, resultando em alguns momentos contemplativos (coisa que um amado/odiado quarteto de barbudos cariocas conseguia fazer muito bem no auge de sua forma). Para nós ouvintes, só nos resta torcer para que a banda siga evoluindo e renda frutos ainda mais interessantes que o elogiado “Música do Esquecimento”. Cacife para tanto eles parecem ter.

quinta-feira, 29 de junho de 2023

Entrevista: Na contramão do agro, Duo Chipa subverte música caipira e romântica com tragos de dreampop, indie rock e diy

*Matéria originalmente publicada no site Scream & Yell.
Três pessoas surgem no palco. Uma delas ostenta um vestido de renda e uma máscara de bode, que em seguida é removida do rosto para soprar um berrante, daqueles usados por boiadeiros para atrair o gado no campo. Uma bateria eletrônica é acionada, enquanto tem início uma espécie de ritmo de moda de viola caipira improvisada em guitarra e baixo. O guitarrista, uma figura alta de óculos, mullets e calça flare, empunha uma Giannini Supersonic dos anos 80 na altura do peito, alternando em seu instrumento ruídos nervosos com linhas tortas e andamentos calmos, enquanto provém vocais de apoio. O baixista se mantém mais reservado, de cabeça baixa usando um gorro, concentrado em tocar suas partes, mas também arrisca mudanças ocasionais para a guitarra principal. A tocadora do berrante segue operando a bateria eletrônica, revelando-se a voz protagonista ao entoar letras apaixonadas modernas (“nóis tamo bem distante mas mesmo assim mando figurinha do whatsapp só pra você”) e momentos de deboche (“acordei com cólica no hotel das puta”), intercalando danças entusiasmadas com expressões sofridas no rosto e uma das mãos no peito. A música soa como uma mistura improvável de Inezita Barroso com Velvet Underground e Odair José buscando ser um Beach House rústico. Mas esse cenário pitoresco cativa e empolga – e muito – em um show do Duo Chipa.

Formado em 2020 por Audria Lucas (vocalista) e Cleozinhu (guitarrista e vocalista), o Duo Chipa começou com a proposta de fazer uma banda de “rock caipira”, misturando a influência de cancioneiros das regiões sudeste e centro-oeste com estilos musicais da cultura latino-americana. A dupla começou a registrar suas composições em fita cassete, utilizando um gravador Tascam Porta 07 de quatro pistas e samples – uma técnica quase artesanal de combinar materiais analógicos e digitais. Essa maneira caseira de registrar suas composições é fruto da cultura gringa do “Do It Yourself”? Não somente. “Nós vemos a música caipira e seus intérpretes com uma atitude muito punk, um estilo de vida muito ‘rockeiro’”, afirma o duo. E como uma sonoridade tradicionalíssima desse mundo matuto pode influenciar jovens tão inquietos? Segundo eles, existem muitas similaridades entre a música caipira e o punk: “tanto no jeito de tocar, com as levadas de mão direita na viola/violão, como no estilo autodidata de aprender a cantar e tocar”.

E justamente com essa mentalidade, o disco de estreia “Toada Audaciosa” (2020) mostrou uma faceta mais crua da dupla, contando histórias sobre causos contemporâneos com duas vozes, guitarras, violões, samples e drum machines tocadas à mão e um teclado Casio CTK. Por mais ríspido que fosse, o trabalho foi interessante o suficiente para chamar atenção e render um convite para uma apresentação online no Festival Volume Morto em 2020, junto de nomes mais conhecidos e com mais tempo de estrada como Lucinha Turnbull, Kassin, Sophia Chablau, entre outros.

Embalados por seus experimentos curiosos, o Duo Chipa soltou o EP “DURA” (2021) e o segundo álbum, “Causos de Matuta” (2022), adicionando à mistura trechos de influências díspares como The Shaggs, Conde Só Brega, Helena Meirelles, Ovelha, Titãs, El Kinto, Paulo Diniz, além de partes de órgão gravadas nos anos 80 em fita cassete pelo avô de Cleozinhu. O ano encerrou com algumas apresentações pós-pandêmicas em formato de banda completa, contando com o reforço de Rafael Omar na bateria e Lucas Monch no baixo. E a cultura do “faça você mesmo” era também reforçada no merch da dupla: camisetas e outras peças adquiridas em brechós estampadas por eles mesmos, além de fitas cassetes e adesivos.

Agora em 2023 o Duo Chipa volta com um novo EP, “Doses da Paixão”, cuja arte da capa é uma boa representação conceitual das faixas; uma pintura quase infantil de um coração anêmico de expressão vazia, com sangue escorrendo de um buraco no canto esquerdo da testa, dando o tom tragicômico de letras sobre saudades, desventuras amorosas e amores não correspondidos embebidos em doses alcoólicas. Masterizado por Guilherme Chiappetta, o lançamento traz a dupla com uma musicalidade polida, mergulhada no brega-romântico com uma roupagem atual e mais acessível.
“Epocler Baby”, lançada como música de trabalho (assista ao clipe mais abaixo), traz em seu arranjo uma fusão bem fiel do brega com o dreampop, agraciada por uma interpretação bebum de Audria Lucas a la Angela Ro Ro e backing vocals de doo wop. O single ganhou um clipe onde o balcão do bar vira um apoio emocional para uma personagem solitária com fígado de ferro. Tanto “Epocler Baby” quanto a jovem-guardiana “Linda Projeção” são composições do sul-mato-grossense Bo Loro, baterista da banda Os Alquimistas – amigo de longa data e também considerado “padrinho” da Duo Chipa.

“Romântica” é uma canção com versos e refrãos ressaltados por um arranjo de metais feito pelo trompetista Bruno Ras. Além da clara referência à música brega, a faixa traz guitarras que prestam tributo a nomes do indie como Pixies, Ween e Meat Puppets. O curto EP termina com “Figurinha do Zap”, um rock ‘n’ roll com vozes e harmonias inspiradas nas toadas caipiras, mas com levada rítmica que chega a lembrar “I’m Waiting For The Man” do já citado Velvet Underground.

Em papo por e-mail com o Scream & Yell, Audria e Cleo contam mais sobre o Duo Chipa, o EP “Doses da Paixão”, como o projeto pretende desmistificar o conservadorismo na música caipira e outros trabalhos relacionados (como o curioso Manobra Feroz, que promete uma fusão entre hip-hop e emo). Confira a entrevista na íntegra abaixo:

De onde vem o nome Duo Chipa? Por acaso é uma brincadeira com a Dualipa?
Não (risos). Vem de “Chipa Paraguaia” [um alimento similar a pães assados com sabor de queijo], que tem bastante na região centro-oeste e claramente no Paraguai. “Duo” vem da dupla: Audria Lucas e Cleo.

Como vocês se conheceram e começaram a banda?
Nos conhecemos em Campo Grande (MS) com o interesse em comum de pesquisar a música caipira e a música latina/paraguaia. Desde então, em 2020, começamos a compor e gravar nossas criações.

A proposta de vocês é misturar moda de viola caipira com sintetizador, bateria eletrônica, samples e guitarra numa pegada indie rock, algo que parece bem singular. Como vocês pensaram nisso? O que faz parte do caldeirão de influências?
Nós vemos a música caipira e seus intérpretes com uma atitude muito punk, um estilo de vida muito “rockeiro”. Tanto no jeito de tocar, com as levadas de mão direita na viola/violão, como no estilo autodidata de aprender a cantar e tocar. Se você pegar o exemplo da violeira Helena Meirelles: ela tem uma faixa chamada “Parteira de Si Própria”, ouça essa faixa e me diga se tem algo mais punk do que isso… Da mesma forma olhamos para duplas como Alvarenga e Ranchinho, Cascatinha e Inhana, Tião Carreiro e Pardinho, Milionário e José Rico ou Inezita Barroso. Nos EUA, é nítida a transição do folk e country para o que conhecemos como rock. Nossa pesquisa é entender uma possibilidade onde o rock nasce da música caipira. Coisa que artistas brasileiros já fizeram, ainda que de maneira tímida. Podemos citar Raul Seixas, Sá e Guarabyra (no contexto do Rock Rural com raízes nordestinas, um pouco diferente do nosso contexto centro-oestino), Matuto Moderno, Charme Chulo, Geraldo Rocca, a música “2001” dos Mutantes, entre outras…

Pela história toda do agronegócio e os últimos resultados das eleições (Jair Bolsonaro ganhou em 66 cidades das 79 do estado e obteve a preferência de 59,49% do eleitorado sul-mato-grossense) e o apoio todo a ele por parte do mainstream sertanejo, o Mato Grosso do Sul parece um estado mais conservador, algo bem distante do que é o experimentalismo do Duo Chipa. Como surgiu esse interesse de vocês pela cultura caipira? Faz parte da ideia desmistificar esse conservadorismo?
Com certeza. É justamente pela desmistificação da ideia de conservadorismo que optamos pelo nome “caipira” ao invés de “sertanejo”. Existe um contraste enorme entre o que a música caipira representa até a metade do século XX com o que o sertanejo representa hoje. [O pesquisador] Marcos Queiroz afirma que existiu “uma experiência marcadamente indígena e africana” no passado da ruralidade sertaneja. Além de que a música caipira sempre foi feita por trabalhadores rurais, diferente da imagem pública da música sertaneja que existe hoje, tomada por cantores(as) brancos(as) com narrativas embranquecidas, elitistas e conservadoras. É triste ver movimentos como o “Agronejo”, por exemplo, que representa a extrema direita e consequentemente um extremo elitismo. É onde o monopólio, a monocultura, os agrotóxicos, o nepotismo, a grilagem, estão acima da agricultura familiar, do livre direito à terra, dos povos indígenas, etc. Mas ao mesmo tempo você vê movimentos como o “Pocnejo” [vertente do sertanejo batizada com a expressão “poc”, gíria usada para se referir a gays], ou por exemplo o aumento na procura por aulas de viola, estudos sérios sobre a música de raiz, artistas surgindo com propostas inovadoras nesse campo de pesquisa… Então sempre há um equilíbrio de forças, pessoas que vêm potência na música tradicional para trabalhar novas ideias, explorar caminhos sonoros e criar outras narrativas.

É engraçado como vocês misturam uma música de raiz caipira com sintetizadores, mas ao mesmo tempo tem essa questão de gravação com fitas de forma caseira e independente, mesclando processos analógicos e digitais. Essa é uma opção estética ou somente de conveniência?
Em cada álbum a gente procurou trabalhar uma sonoridade diferente, tanto nos arranjos como no modo de produção. A mistura entre o processo analógico e digital foi uma experiência muito positiva. Isso ampliou a possibilidade de trabalhar com qualquer equipamento que tivéssemos em mão.

Quem ouve o primeiro disco, “Toada Audaciosa”, o EP “Dura”, o “Causos de Matuta” e agora o EP, percebe que vocês estão refinando mais o som e a qualidade das gravações. Isso é um reflexo da entrada do Rafael Omar na química do Duo? Como ele passou a tocar com vocês?
Acho que não (risos). Nós aprendemos a mixar e produzir fazendo esses discos, então eles fizeram parte de uma experimentação nossa, de descobrir possibilidades de captação, mixagem, etc. Mas atualmente nós vivemos juntos, Audria, Omar e Cleo, então a gente sempre conversa sobre produção e mostramos o que estamos fazendo no momento, isso com certeza impulsiona a qualidade das gravações. Ele [Omar] começou a tocar bateria com a gente em 2022, e na época o MONCHMONCH tocava baixo. Quando o Monch saiu, Omar passou para o baixo e voltamos a tocar com a drum machine ao vivo. A colaboração do Bruno Ras na música “Romântica”, por exemplo, também foi algo que nos impulsionou bastante. Tivemos que aprender como gravar e mixar um trompete. Além disso, chegamos a fazer dois ou três shows juntos, com ele tocando outras músicas.

Pelo que pesquisei, até o momento vocês tocaram em São Paulo e Ribeirão Pires (SP), além de Campo Grande (MS), que por sinal deu origem ao mini doc Chipa de Ouro. Esqueci de alguma localidade? Tem planos concretos ou convites para shows em outros estados?
Foi isso mesmo. Infelizmente ainda não nos organizamos para tocar nos interiores, mas é nossa maior intenção. Por enquanto a agenda está aberta. Temos convites para tocar na capital e interior do RJ, e novamente em Campo Grande (MS), mas nada fechado.

As faixas “Linda Projeção” e “Epocler Baby” são de autoria do Bo Loro, músico campo-grandense que toca bateria na banda Os Alquimistas. Vocês já tinham gravado uma faixa dele antes, “Tremenda Baixaria”, presente no primeiro disco. Como começou essa parceria entre vocês?
O Bo Loro é praticamente o padrinho da banda (risos). A Audria conhece ele desde os 15 anos. O Cleo conheceu os dois em 2019, e todos temos interesses em comum pela música caipira, brega, jovem guarda, entre outros. Nossa conversa de whatsapp é cheia de áudios com algumas composições e outras referências (risos).

Além de lançar os discos como Duo Chipa, no bandcamp vocês se definem como um “estúdio” e postam gravações de outros trabalhos, como o Manobra Feroz, o Maleta e os discos solo da Audria e cleozinhu. Gostaria que vocês falassem um pouco sobre esses projetos e como eles diferem do que vocês fazem como Duo Chipa.
A gente já quis ser um selo, já quis ser uma produtora, mas acho que um “estúdio” resume bem o nosso trabalho. “Estúdio Duo Chipa” é como um leque de pesquisa sonora mais ampla e a Duo Chipa é especificamente os trabalhos da banda. Em 2022 lançamos pelo Estúdio o álbum “Manobra Feroz Vol. 1”, reunindo três artistas solo: cleozinhu, omar e akaStefani (outro pseudônimo de Audria Lucas). Apesar de serem as mesmas pessoas da Duo Chipa, o estilo é bem diferente, já que neste caso as influências vêm do hip-hop e do emo. Assim, cada um de nós também busca sua sonoridade individual, numa espécie de carreira solo coletiva (risos). Ainda dentro do leque do Estúdio, a gente posta alguns discos de vinil de outras pessoas no nosso canal do YouTube. Raridades que encontramos em sebos e afins, coisas que ainda não foram disponibilizadas na internet e que são importantes para nossa pesquisa, fazem parte do nosso imaginário.

Por fim, quais os próximos planos do Duo Chipa?
Nós estamos com uma pesquisa muito intensa sobre a Viola de Cocho [instrumento musical comum nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, sendo uma viola feita em um tronco de árvore, esculpido da mesma maneira como se faz um cocho, usado para colocar alimentos para animais na zona rural] e o cururu [ritmo musical similar ao repente ou combate poético ao som de violas caipiras]. Estamos entrando numa pegada de punk caipira, com uma pesquisa profunda sobre a música tradicional mato-grossense. Até escrevemos um projeto de edital sobre isso. E o Manobra Feroz também vai lançar os volumes 2 e 3, talvez até o 4 esse ano!

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Entrevista: Guitar band diy experimental fluminense, a gueersh supera roubadas para divulgar o excelente álbum “Tempo Elástico”

*Matéria originalmente publicada no site Scream & Yell.
Se ser músico independente no Brasil já não é exatamente uma tarefa simples nos tempos atuais, imagine amplificar essa experiência partindo em uma mini excursão até países vizinhos dentro de um carro da década de noventa? Pois foi exatamente essa façanha que a banda fluminense gueersh apostou cumprir para divulgar “Tempo Elástico”, seu disco cheio de estreia e um dos registros mais interessantes de 2023.

Se o EP “Fogo Amigo” (lançado em outubro de 2022), já dava uma pequena amostra do som do grupo em quatro faixas, “Tempo Elástico” simboliza muito bem o que é a banda: uma disputa livre, amigável e despretensiosa entre linhas de guitarras a la Sonic Youth, baixo e bateria, mas ainda assim com uma sensibilidade pop abraçada por vocais suaves e sintetizador. Gravado ao vivo no Emissor Estúdio, braço sonoro do sítio agroecológico Sereno Sana (Macaé/RJ), o disco foi mixado por Lê Almeida, masterizado por Rafael Rezende e tem divulgação digital em conjunto pela Transfusão Noise Records e Feitio Records.

Empolgado com o fim das restrições pandêmicas, o quinteto formado atualmente por Lívia Gomes (voz, guitarra e sintetizador), David Dinucci (guitarra), Guilherme Paz (guitarra), Thomaz Alves (baixo) e Igor Arruda (bateria) se engajou em voltar aos palcos, montando uma mini turnê econômica com shows pelo sudeste e sul do País – passando por cidades como Rio de Janeiro, Campinas, Sorocaba, Curitiba, Balneário Camboriú e Porto Alegre – e esticando até Argentina e Uruguai, para tocar com as bandas locais de Buenos Aires e Montevidéu.

Com esse roteiro, a gueersh finalmente pôde botar seu som na estrada em uma vivência coletiva meio nômade com baixo orçamento e, por mais utópica que possa parecer, a iniciativa tem rendido bons frutos: “Fizemos amigos de verdade em vários lugares. Tem também as pessoas que se afetam pelo nosso som e vem contar pra nós depois. Essas são as melhores”, conta Lívia. “Conseguimos nos divertir com o que aparecia espontaneamente para nós, compartilhando tudo desde o climinha congelante, o famigerado choripan [pão com linguiça típico na Argentina e no Uruguai], poder vivenciar um pouco da cultura local e apreciar maconha prensada de Madureira com nossos hermanxs”, explica Igor.

Porém, como nem tudo é perfeito, a trupe passou por uma roubada bem literal: o automóvel da banda – uma Parati 1.8 de 1993, placa LHW3E40, carinhosamente chamada de “charanga” – foi furtado em Montevidéu, enquanto se apresentavam na cidade. A história foi bem documentada via stories no Instagram do grupo, que chegou a pedir ajuda financeira aos fãs e amigos. Mas apesar da baixa (a charanga era considerada uma “membra”) a gueersh não esmoreceu. “Pra mim fica como um impulso”, opina Guilherme. “Entendo o reinício dos ciclos como algo a ser respeitado, então vamos celebrar a morte da charanga mesmo não tendo seguro (risos)”.

Felizmente os instrumentos não estavam no veículo, e assim os músicos prosseguiram atravessando a fronteira levando os equipamentos no braço e correndo para não perder os ônibus. O Scream & Yell conversou rapidinho com a banda por e-mail sobre o disco, as apresentações mais recentes, o roubo da querida charanga e o que mais deve vir pela frente. Veja o papo abaixo:

Primeiramente, de onde saiu o nome da banda?
Lívia: Fomos juntando fonemas que soavam bem pra nós e saiu “guersh”. O segundo “E” foi ideia do Berna (da banda marianaa).

Vocês estavam em turnê pelo sul do Brasil e emendaram uma passagem pela Argentina (Buenos Aires) e Uruguai (Montevidéu) de carro. Como está sendo/foi essa experiência? E a receptividade do público dentro e fora do País?
Guilherme: Temos sido recebidos por anjos e retribuímos angelicalmente (risos). Pra mim, tocar fora nunca foi um sonho ou algo do tipo, mas de fato esse cruzamento com cidades é algo mágico, cada lugar tem sua aura e dialogar com isso (e pessoas) usando a música é muito distinto.

Lívia: Foi incrível passar pelo sul e pelos dois países; aprendemos a lidar com muitos desconfortos internos e a empurrar um monte de barreiras da comunicação com pessoas desconhecidas, às vezes em outro idioma, quase todo dia. O público tem sido ótimo, fizemos amigos de verdade em vários lugares e tem também as pessoas que se afetam pelo nosso som e vem contar pra nós depois. [Essas] são as melhores.

Igor: Foi a primeira vez de todos nós nesses dois países e foi incrível chegar e sermos recepcionados de forma tão carinhosa por pessoas que só tínhamos até então contactado virtualmente. Não levamos quase nada de grana, então com um esforço coletivo conseguimos poupar bastante e nos divertir com o que aparecia espontaneamente para nós, compartilhando tudo desde o climinha congelante, o famigerado choripan (pão com linguiça), poder vivenciar um pouco da cultura local e apreciar maconha prensada de madureira com nossos hermanxs.

E essa história do carro roubado? Como aconteceu e como vocês contornaram isso?
Guilherme: Pra mim fica como um impulso [para a banda]. Não estamos aqui por acaso ou a passeio e entendo o reinício dos ciclos como algo a ser respeitado, então vamos celebrar a morte da charanga mesmo não tendo seguro (risos).

Lívia: Acho que ainda estamos contornando isso. É complicado. A charanga era um personagem, “membra” da banda também, tinha muito valor sentimental ali, muito tempo e cuidado dedicados a ela. Quem tem carro velho sabe como a gente se apega. Nós fomos tocar sem ela, de carona com a Vicko (nossa amiga uruguaia) e então, quando voltamos às três da manhã, não estava lá onde estacionamos. O dia já estava muito estranho e foi difícil acreditar que tinha sumido assim, do nada. Ao mesmo tempo, rolou esse sentimento em grupo de seguir em frente, afinal é algo material; se vai, tem que voltar de alguma forma.

Igor: Fizemos nossa última apresentação em Montevidéu e fomos com o carro da nossa amiga que estava nos hospedando e deixamos a Parati estacionada na rua perto da casa dela, como fizemos todos os dias. Quando voltamos, ela nos deixou para descarregar as coisas e nos arrumar para seguir para Pelotas na manhã seguinte, já imaginando a normalidade de termos de amarrar todos os equipamentos em cima do carro e tudo mais. Mas a Vicko voltou e só pudemos receber de forma incrédula a notícia trágica do sumiço da nossa charanguinha. Demorou um pouco pra ficha cair e até reagimos de forma bem-humorada nos primeiros instantes. Fomos na delegacia, consulado brasileiro, colamos cartazes pelas ruas de Montevidéu e tudo mais o que poderíamos fazer… Foi preciso não deixar a tristeza dessa situação tomar conta, ainda mais com uma porção de apresentações pela frente. Tivemos que nos reestruturar de várias formas pra conseguir sair de Montevidéu e seguir adiante na esperança de que a charanguinha seja encontrada em algum momento e já aproveitando pra voltar por lá pra buscá-la. Tivemos também muita ajuda de amigos e família e pessoas que se sensibilizaram com essa situação. Então vimos que não poderíamos reagir de outra forma senão continuar e terminar o que começamos.

Como foi o processo de composição para o EP “Fogo Amigo”? E para o disco “Tempo Elástico”?
Guilherme: A gente curte improvisar, tiramos as ideias de ficar tocando juntos por horas e horas. Eu costumo desenhar as músicas, mas tento intencionar a direção mais do que controlar o processo.

Lívia: Para o “Tempo Elástico” a gente foi compondo as primeiras músicas com três guitarras, depois entrou Phill [ex-baterista] e Thomaz e foram dando corpo e compondo outras partes juntos.
O álbum foi lançado pelo próprio selo de vocês, o Feitio, em parceria com o Transfusão Noise Records, do Lê Almeida, que também mixou o trabalho. Como aconteceu essa dobradinha?
Guilherme: Lê é amigo de tempos, curtimos muito o trabalho dele e naturalmente trocando ideia surgiu isso. Eu sou bem insatisfeito com o som de “Tempo Elástico”, muito por como a gente gravou, tocando alto pra caralho e por falta de percepções que vieram aos poucos depois.

Lívia: Lê apoiou a banda desde o começo, abrindo espaço pra gente no Escritório [sede da Transfusão Noise Records] e nos [eventos] Fechamentos, sempre pilhando coisas. Mixar o “Tempo Elástico” foi mais uma dessas pilhas, era um momento que a gente precisava de gás pra terminar e lançar o disco que já estava gravado há quase um ano e pra isso o Lê foi fundamental.

No som de vocês dá pra perceber uma boa influência de guitar bands. Quais vocês diriam que são suas referências principais?
Guilherme: Quando era adolescente, um grande amigo (beijo Will!) me apresentou Velvet Underground, Neu!, Television… Mas o que me instiga mesmo é ouvir algo pela primeira vez, e dá-lhe pesquisa! Cada lugar tem seu modo musical, rítmico, sua ligação espiritual com a música. É esse feeling que me conecta mais. É incrível como ele vem de lugares inusitados. Nessa viagem ouvimos coisas incríveis de música livre no Uruguai, tem uma turma muito boa fazendo música lá e conseguimos acessar isso tocando com um outro projeto lado B que levamos na bagagem. Isso tudo é algo bem pessoal, somos um grupo e cada um curte mais um tipo de música, adoro isso.

Igor: Eu fui criado por uma família de beatlemaníacos, então desde muito novo venho bebendo da fonte desse rock mais clássico, que inclusive continuo adorando e isso acabou me influenciando demais musicalmente, ainda quando mais jovem.

Qual o repertório do show? Vocês estão tocando composições novas além das faixas do disco e do EP?
Igor: O repertório tem sido bem dinâmico justamente por estarmos com muita coisa fresca de 2022 pra cá. E aproveitamos os shows para podermos evoluir algumas dessas novidades que vão surgindo, que ganham cada vez mais vida se desenvolvendo ali no palco mesmo; com improvisos, acidentes e essas coisas desse tipo que ajudam a desenvolver e nos conectar cada vez mais essas novas ideias. Mas sim, geralmente rola coisa antiga também, só que com algumas transformações naturais que acabam surgindo com uma estrutura nova e mudanças na formação do grupo.

Essas novas composições soam diferentes do “Tempo Elástico”? Qual a mudança que vocês enxergam nelas?
Guilherme: Completamente. “Tempo Elástico” foi um exercício de composição, um caderno de caligrafia (risos). Tô muito curioso em como criar moldes e padrões mais pessoais, pesquisando ritmos e tensões, craquelados, brincando mais.

Lívia: Sim, estamos tentando soltar mais essas composições, elas têm sido mais divertidas, outras mais atonais e caóticas. As partes de canção também estamos batalhando para fazer o som funcionar melhor em grupo, aprofundando o que aprendemos com o “Tempo Elástico”.

Uma pergunta de nerd de equipamento: pelos vídeos ao vivo, reparei que vocês usam instrumentos da marca brasileira Giannini (uma guitarra Supersonic, talvez uma Stratosonic e um baixo Sonic). Isso é uma opção estética, por conveniência ou apenas calhou mesmo?
Guilherme: Eu uso porque tem um som delícia, quentinho (risos), chega a derreter manteiga. E adoro a pegada dela. Mas de fato tenho porque é a melhor coisa que pude comprar com a grana que nem tinha (risos). Ah, é a guitarra de “cor goiaba”.

Por fim, quais os próximos planos da gueersh depois dessa turnê?
Guilherme: Gravar!!!! E seguir tocando onde pudermos, agora mesmo sem carro e falando isso na estrada, que não temos dinheiro nem pra chegar nos nossos próximos shows. Mas essa é a intenção: som!

Lívia: Voltar pra nossa terra e gravar as músicas novas no inverno do Sana.

sexta-feira, 17 de março de 2023

Entrevista: Post-rock? Psych-rock? Nada disso? Tudo? Ouça “Dose”, a nova expiação sonora do Morning Scales the Mountain

*Matéria originalmente publicada no site Scream & Yell.
“Barulho e dissonância extremos podem ser algo incrivelmente purificante”, já dizia Kim Gordon em seu livro de memórias “A Garota da Banda”. Se o alto volume de apresentações ao vivo pode propiciar um ambiente sonoro imersivo, esse efeito pode ser ainda mais catártico se a música em questão for improvisada livremente, seguindo o fluxo emocional dos artistas e expressões por meio de seus instrumentos. E esta é justamente a receita do que o Morning Scales the Mountain faz em seu novo álbum, “Dose” (2023): uma expiação sonora.

“Tudo no Morning Scales the Mountain é livre e o caminho é construído ao longo da sessão”, afirma o guitarrista e baixista André Ramiro (conhecido pela sua participação na célebre banda curitibana de post-rock ruído/mm, além de outros projetos como Índios Eletrônicos, Spectral Noise e Ramiro Matéria). “Não há repetições ou registros extras, então as faixas aparecem de acordo com o estado mental de cada um ali participando”, pontua o músico. A descrição pode soar semelhante a antigas jam sessions de músicos de jazz; porém neste caso a sessão é amplificada por riffs e drones dissonantes.

O MStM tomou forma em Houston, Texas (EUA), quando o guitarrista Tom Carter (influente na cena experimental norte-americana por conta de sua banda Charalambides), convidou o amigo baterista e percussionista John Alan Kennedy (ex-Cyclope Joint) para tocar com ele e Ramiro, um brasileiro que se mudou para sua cidade a trabalho e com quem mantinha contato pela internet. O resultado do ensaio descompromissado foi tão inspirador que o trio um tempo depois divulgou seu primeiro álbum, “Morning Scales the Mountain” – uma frase retirada do poema “Ephemeris”, de Philip Lamantia.

Lançado em setembro de 2018, o disco trazia quatro faixas que passeiam por longas paisagens com ecos de post-rock e improvisações instrumentais longas e viajantes, como o single “The Stars Sit On High”, que beira os vinte minutos. A “banda imaginária de rock” – como Tom Carter gosta de se referir ao grupo – ocasionalmente conta também com o reforço do ex-moscovita Misha Tsypin (poeta e artista performático) em vocais itinerantes e efeitos eletrônicos nas apresentações ao vivo.

Agora o trio principal do MStM finalmente retorna com seu segundo álbum, lançado pelo selo Sinewave. Gravado em Houston entre 2019 e 2020 por Ryan Edwards e Shannon Smith, o material apresenta cinco composições com a dinâmica de música livre já característica do grupo; só que desta vez a guitarra embebida de fuzz e wah de Tom Carter soa um pouco mais agressiva, mas sem abrir mão de uma linguagem minimalista. Pode-se dizer que “Dose” é a faceta mais roqueira da banda até o momento, alternando-se entre dedilhados sublimes e peças de bateria que oscilam entre participações corpulentas e marcações tímidas, construindo mais pulso do que ritmo, desdobrando-se em texturas e fluxos intensos.

Atualmente residente em Paris (França), André Ramiro conversou rapidamente por e-mail com o Scream & Yell para dar mais detalhes sobre a nova obra do MStM, explicar como funciona a dinâmica do grupo e também fazer um certo mistério sobre seus outros projetos.

Em comparação ao álbum anterior, “Dose” tem uma sonoridade mais pesada, utilizando mais guitarras com fuzz e wah wah e a bateria está mais presente e pulsante. Falando em rótulos, é como se o primeiro disco fosse mais para post-rock e o novo para psych-rock. Ao que a banda acha que se deve essa mudança?
Acredito que seja difícil rotularmos alguns álbuns ou determinadas bandas. O próprio termo post-rock é uma caixa bagunçada repleta de grupos indefinidos, né? Porém, a comparação que você fez entre o disco anterior e “Dose” é verdadeira. Pode-se dizer que a sonoridade final ficou mais pesada. Desta vez incluímos o contrabaixo em algumas gravações (no outro disco eram apenas guitarras) e talvez seja este o fator de maior acento e peso nas faixas.

Como aconteceu o processo de composição do álbum?
Tudo no Morning Scales the Mountain é livre e o caminho é construído ao longo da sessão. Ficamos no estúdio por volta de três a quatro horas e existe apenas um take para cada momento. Assim, alguns ficam legais, outros nem tanto, mas procuramos utilizar o máximo possível. Não há repetições ou registros extras, então as faixas aparecem de acordo com o estado mental de cada um ali participando.

“Dose” deve sair em formato físico também?
A Sinewave vai distribuir nos streamings e é nosso selo principal. Há interesse de selos europeus para uma tiragem pequena em vinil (CD nem vale a pena hoje em dia), mas vamos ver. Nada certo ainda.

Vocês pretendem tocar o álbum ao vivo, fazer shows para divulgá-lo?
Sim, sempre que nos encontrarmos iremos tocar. Há boa chance de eu ir visitar o Tom e o John no Texas ainda este ano, e alguns shows na Europa poderão também acontecer, já que estou por aqui [na França]. Queríamos muito tocar no Brasil um dia, vamos ver se rola. Porém, sobre divulgar o álbum ao vivo: como disse antes, o show pode até ter uns elementos que aparecem no disco, mas a viagem é livre e normalmente bem diferente.

Reparei que John Alan Kennedy assinou a arte da capa dos dois álbuns da banda. Existe um conceito específico ou ideia principal que o artista/baterista quis transmitir nas capas?
O John é um artista único, uma das pessoas mais talentosas que conheci no Texas. A arte do nosso primeiro disco ele fez à caneta e a quantidade de detalhes é surreal. Ele fez este desenho novo para “Dose” que também achamos muito bacana e decidimos utilizar. Não posso falar por ele, mas me parece que a ilustração do John transmite os mesmos dualismos do nosso som: luz e sombra, amor e ódio, vida e morte, e outros tantos.

Tempos atrás morar em cidades ou estados diferentes eram razão suficiente para que bandas chegassem ao fim de suas atividades, mas o MStM possui integrantes em continentes separados. Como vocês enxergam isso e o quanto isso atrapalha ou beneficia o grupo?
O MStM é um grupo que não executa faixa de disco ao vivo, então não há necessidade de ensaio. Na verdade, todo encontro com instrumentos vira uma gravação, o que para mim é o lado positivo do grupo. O problema de não estarmos juntos na mesma cidade ou país é que não iremos gravar usando computadores à distância. Precisamos estar na mesma sala, ouvindo uns aos outros e por vezes não ouvindo nada de tão alto (risos), mas a presença física é obrigatória.

Em 2021 vocês participaram do “Love You”, um álbum tributo duplo em homenagem ao Syd Barrett, juntamente com bandas de diversos países como Itália, México, França, Irlanda, Reino Unido, EUA, etc. Vocês gravaram uma versão de um outtake instrumental obscuro chamado “Rhamadan”. Como isso aconteceu?
Que legal que você achou isso, estou preparando um post para colocar esta track no bandcamp! Este convite veio pelo Tom Carter, que tem muita história na música experimental dos EUA e do mundo, e com isso muitos contatos de gravadoras e produtores. Fizemos esta gravação ao vivo no Khon’s, um bar em Houston aberto a experimentações e que ajuda muito a cena de improvisação. Lembro que ouvimos juntos a track original para delinearmos algo, mas no final trocamos umas palavras de como íamos começar, alguma ideia de meio e algo para o final; ou seja, não definimos quase nada (risos). No final das contas gravamos um encontro sonoro dentro do nosso ambiente espacial.

O seu último show com o ruído/mm aconteceu em 2016 no South by Southwest e os outros membros estão envolvidos em projetos distintos. Mas recentemente o perfil da banda no instagram postou imagens de vocês juntos e em um estúdio. Podemos esperar por novidades?
Acho que tiveram outros shows [do ruído/mm] depois do SXSW, porém foi realmente meu último com a banda. Como estou morando fora [do Brasil], tento ajudar como posso em composições e gravações, mas não é a mesma coisa; a presença faz uma grande diferença. Diria assim: o ruído/mm está hibernando pós-covid, que não foi fácil para ninguém. Então vejo o grupo quieto, sem muitas palavras, porém com seus integrantes estudando, gravando e trabalhando em diferentes projetos. Ou seja, o vulcão ainda está ativo.

Além do Morning Scales the Mountain, quais são seus próximos planos? Você pretende voltar a lançar mais material pelo seu projeto solo, o Ramiro Matéria?
Meus planos mudam o tempo todo. Tem dias que quero lançar um monte de estudos do Ramiro Matéria (tem muita coisa para sair), porém no dia seguinte quero vender tudo e ficar só com um violão e nunca mais gravar (risos). O certo é que em Paris ainda não achei meu “Morning Scales por milímetro” e fazer as coisas sozinho é muito chato. Ter uma banda é uma das melhores experiências da vida, então espero achar as pessoas certas aqui para a adrenalina voltar a correr.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Entrevista – A segunda vida pós dispopia de Marina Gasolina: “Fui até o fim do mundo e voltei. Fui até o inferno e voltei.”

*Matéria originalmente publicada no site Scream & Yell.
Marina Gasolina é o alter ego de Marina Vello, artista curitibana que já passou por projetos como Bisquit Pride, Laura’s Problem e o festejado (e odiado) Bonde do Rolê – com quem viajou o mundo realizando apresentações intensas e estapafúrdias e registrou o disco “With Lasers”, disco presente na lista de “Melhores de 2007” do Scream & Yell. Depois de sair do caótico grupo de fake funk carioca, Vello reapareceu anos mais tarde em uma roupagem bem mais sóbria com o Madrid, um duo formado com Adriano Cintra (ex-CSS). O projeto rendeu clipes, um disco, um EP e uma apresentação no finado Planeta Terra Festival, em 2012 – e deve renascer em 2023. Seu primeiro disco solo, intitulado “Commando” e lançado em 2013, trazia rock flertando com música eletrônica e apontava um caminho promissor. Mas desde então Marina Gasolina evaporou e sumiu dos holofotes. O que aconteceu?

Na verdade, Marina começou a registrar sozinha em 2014 uma série de demos com seu próprio equipamento em um estúdio em Paris. Mas logo a compositora teve que sobreviver a uma longa e degradante travessia que englobava dependência química, fim de relacionamentos e uma mudança de volta ao Brasil – que também vivia sua distopia nacional com o golpe, o bolsonarismo e o coronavírus. Em meio a essas catástrofes, foi necessário que Marina Gasolina se recolhesse para dar lugar à Marina professora, artista visual e escritora. “Como um bicho que se esconde para ir morrer, eu fui me esconder, mas daí melhorei”, conta. E somente depois deste período de reclusão que a Marina musicista começou a revisitar essas gravações, e o resultado saiu finalmente em novembro de 2022, sob o nome de “Dispopia”.
Mixado e masterizado por Rafael Panke (ruído por mm/Delta Cockers), o álbum é identificado por sua criadora como “uma obra sobre luto, pulsão de morte, uma ode às drogas e ao fim do mundo, ao fim de tudo”. Não é à toa que o desenho da capa (acima) é o traçado de um Spomenik (“monumento”, na língua croata) chamado Memorial da Batalha de Sutjeska no Vale dos Heróis, construído em 1971 em Tjentište, na Bósnia. Spomeniks são marcos futuristas construídos na antiga Iugoslávia como um tributo às batalhas da 2ª guerra mundial que ocorreram no território do antigo país, com o intuito de lembrar momentos de dificuldade, de vitória, de guerra e de paz. Sendo assim, a arte da capa traz uma série de significados à artista, como se visitar pessoalmente esses lugares e imagens na época fosse uma espécie de premonição do que estaria por vir – tanto para as batalhas pessoais de Vello quanto para as do Brasil e do mundo.

“Dispopia” traz uma sonoridade melancólica já presente em canções anteriores da artista como em “I’ve Been Around” e “Bride Dress in a Frame”, do Madrid, e evitando momentos mais agitados como o single “Leone”, mas mantendo alguns elementos eletrônicos minimalistas influenciados pela coldwave e post punk. “Struck” foi lançado como primeiro aperitivo do disco, trazendo um clipe filmado por Fernando Nogari em lugares abandonados nos arredores de Petrova Gora, na Croácia. Em seguida, foi a vez de “Know Nothing”, com um vídeo mostrando várias pastas de fotos e registros de períodos diferentes da vida da compositora, e mais recentemente, “Paranoia Beams”, misturando trechos de um projeto de filme de Vello com Nogari e imagens dos patinadores Christopher Dean e Jayne Torvill nos Jogos de inverno de Sarajevo em 1984.

Morando em São Paulo desde janeiro de 2022, Marina começou a divulgar “Dispopia” com alguns shows pela capital paulista, Londrina (PR), Rio de Janeiro e Vitória (ES). Por e-mail, Marina Vello falou com o Scream Yell sobre esse retorno de Marina Gasolina, o conceito da obra e o que mais deve vir pela frente. Leia o papo abaixo.

“Commando” saiu em 2013 e “Dispopia” saiu só no final de 2022. O que você fez nesse tempo todo entre os dois? E por que voltar com este disco?
O “Commando” era um disco pronto desde 2011. Eu o deixei numa gaveta e não sabia bem o que fazer. Quando lancei, estava envolvida nas coisas do Madrid; em 2013 lançamos também um EP, então foi um lançamento sem show, divulgação, foi bem tímido. Eu comecei a gravar e dar forma ao “Dispopia” em 2014. Era para ser um filme, chamado “Utopia”. Esse disco era a trilha sonora e a ideia era tocar essa trilha ao vivo nas sessões do filme. Era a história de uma pessoa que acordava num mundo em escombros completamente sozinha. Sem saber o que aconteceu ou onde estava exatamente, essa pessoa perambulava pelas ruínas fazendo perguntas sem respostas. Um diálogo interno, sobre trauma, sobre solidão, sobre o fim do mundo. A gente filmou em 2015, na Bósnia e na Croácia, em alguns Spomeniks abandonados. Também visitamos lugares que foram usados como centros esportivos nas Olimpíadas de Inverno de Sarajevo de 1984. Também estavam completamente abandonados. Antes de filmar quando estávamos visitando os lugares, não tinha nenhum taxista que queria levar a gente até o bobsleigh de Sarajevo (hoje bem mais turístico), pois além de ladrões, o lugar ainda tinha suspeita de minas terrestres, plantadas durante a Guerra da Bósnia. A gente não conseguiu terminar o filme. E depois disso eu adoeci. Me internei na cocaína, adoeci mais ainda junto ao golpe de 2016. Só em 2019 consegui parar, mas melhorar mesmo, só isolada na pandemia. Como um bicho que se esconde para ir morrer, eu fui me esconder, mas daí melhorei.

O que é “Dispopia”, além do trocadilho entre “distopia” e “pop”?
No filme “Utopia”, tem esse momento onde sentada embaixo de um trem num Spomenik em Jasenovac, eu me tatuava no braço a palavra “Distopic”. Mas eu errei, o “t” virou “p” e saiu “dispopic”. Ao longo dos anos fez cada vez mais sentido. A sonoridade do disco tem algo pop e ao mesmo tempo não, como uma guitarra do Kurt Cobain, levemente desafinada. É um disco sobre o fim do mundo e o fim dos sonhos utópicos, talvez um réquiem à ingenuidade. Dispopia é um nome bem ilustrativo.

A maior parte de “Dispopia” foi gravada em 2014 quando você morava em Paris, mas ele está saindo da gaveta só agora. Como foi o processo de gravação e por que demorou tanto tempo para o álbum sair?
Eu tinha esse teclado brancão, usava as baterias dele (aqueles ritmos, valsa, salsa, rock, pop), captava o teclado em casa, tratava e ia para um estúdio de ensaio, onde eu plugava meus equipos e captava as guitarras, e baixos ali mesmo. As vozes, às vezes gravava ali, às vezes gravava em casa. Nessa época, não me achava capaz de produzir e gravar um disco. Achava que eu tava gravando demos… Engraçado que só em 2021 eu percebi que compus, produzi e gravei um disco totalmente sozinha. Eu sempre colaborei com outras pessoas, e nunca achava que eu poderia me atrever a produzir nada. Sou uma sobrevivente da síndrome de impostora, eu diria. Em 2021, achei num google drive um mp3 com todas as músicas numa sequência. Fui dar uma volta e escutar, sentei no meio fio e chorei. Dali mesmo enviei uma mensagem para meu amigo Rafael Panke perguntando se ele toparia mixar e masterizar o disco. A pós produção quem fez foi ele e ficou muito foda. Então acho que a lição que fica desse disco é que eu sou capaz de fazer coisas sozinha, mas que no fim das contas a colaboração é essencial nos processos criativos. Esse disco não teria saído sem o Panke. E não seria tão bom. Modéstia à parte, esse disco é muito bom.

Apesar de ter sido gravado em 2014, na minha opinião o disco não tem timbres ou produção datadas. Isso foi pensado no momento de gravação dele ou algo foi alterado posteriormente na mixagem/masterização?
Nada foi pensado. Eu tinha comprado alguns pedais bem legais na época, e passava bastante tempo brincando com os pedais. Rolou. Na real é tudo bem simples. Muito reverb, muito chorus, muito delay e muita sofrência.

O clipe de “Struck” foi dirigido por Fernando Nogari e filmado em lugares abandonados nos arredores de Petrova Gora, na Croácia. Como foi essa experiência e como ela se encaixa no disco?
Acho que expliquei ali em cima. Mas talvez seja importante falar sobre o Fernando. A gente conversava muito e se via muito na época que eu tava compondo esse disco. Ele morava em Sarajevo, eu em Paris, tinha uma certa mágica, a gente se encontrava em lugares e países diferentes, a gente sempre tava fazendo umas coisas absurdas juntos, sempre acontecia muita coisa doida, e ao mesmo tempo a gente era esses jovens de 30 anos meio perdidos na vida, duas peninhas levadas pelo vento. “Struck”, especificamente, foi filmado num monumento chamado Petrova Gora. Um monumento construído em homenagem a um hospital subterrâneo que existia e operou durante a segunda guerra. O monumento construído na era Tito era um centro cultural que foi abandonado durante as guerras de independência, e durante a guerra de independência da Croácia, tornou-se novamente um hospital. Achamos muito lixo hospitalar (no clipe é visível, eu em cima de uma montanha) e tinha também um quarto com um monte de uniforme do exército Serbio (exército responsável pelos genocídios nos balkans nos anos 90). Ironicamente o clipe só foi editado em 2021, e pasmem, fui eu quem editou. No meu celular. Foi legal aprender a fazer mais esse paranauê. Clipe de “Know Nothing” fui eu que fiz tudo. E, o terceiro clipe lançado para “Paranoia Beams” é do Fernando parte do “Utopia” filme, que eu reescrevi o texto do início e fiz umas colagens na edição, então ficou uma collab entre eu e o Fer.

As letras e o clima de “Dispopia” são bem pesados e refletem sobre muita coisa que você passou antes do lançamento do álbum. Como é para você revisitar essas histórias e esse repertório ao vivo depois de tanto tempo?
As letras são bem biográficas, algumas falam de um passado remoto e suas implicações no presente (presente de 2014 ou 2022, sei lá, risos) como “Serial Lover”. Algumas, como “Miss C”, eu não sei se foram premonições ou se eu simplesmente perpetuei o que eu chamo agora de premonição. Muita coisa que descrevo ali aconteceu depois, nos anos que vieram. Inclusive esse momento de solidão extrema, fui até o fim do mundo e voltei. Fui até o inferno e voltei.

Para o merch nos shows, você está vendendo camisetas e blusas que você mesma faz com o logo da capa do disco. Existem planos de lançar o álbum em mídia física ou a ideia é manter apenas no formato digital?
Não. Mas se algum selo quiser lançar físico, só mandar um email, que a gente conversa. Mas eu não tenho nada planejado! Seria lindo.

Ao ouvir o “Dispopia”, dá para sacar algumas das influências que você já declarou antes, como post punk, coldwave, vocais que remetem um pouco a Courtney Love, Siouxsie Sioux e algo de PJ Harvey. Quais outras referências que na sua opinião foram marcantes para o disco, mas que podem não estar tão aparentes assim?
Acho que referências de produção, tudo que aprendi com o Daniel Hunt (que produziu meu primeiro disco “Commando”) e com o Adriano Cintra. Eu escuto muita música erudita, na época escutava muito Satie, Chopin, tem um quarteto de cordas chamado Balanescu que eu sou obcecada, além de música tradicional dos balkans também. Acho que além disso, a influência literária deve ser mencionada; tem um certo cinismo, uma certa ironia e muito drama presente. Esses foram os últimos anos que consegui ler avidamente. Em 2013 li “Infinite Jest” [de David Foster Wallace, traduzido como “Graça Infinita” no Brasil]. Dizem que o livro mais marcante da sua vida você lê antes dos 30. Li aos 29. Foi a coisa mais triste e bonita que já li na vida. E difícil também. Mas a hora que entendi, que engrenei e entrei no ritmo, foi devastador. Em 2014, li muita Margaret Atwood, Sylvia Plath, Artaud, Balzac, Jonathan Franzen. Muito drama, distopia e tristeza. Isso tá no disco.

Para tocar as músicas do “Dispopia”, você montou um trio com o Paulo Beto e a Tatiana Meyer do Anvil FX. Como aconteceu isso? Foi difícil adaptar os arranjos para este formato?
Conheci o PB lá por 2012, pelo Daniel Hunt, e sempre admirei de longe. Ele passou por Curitiba lá por 2018 e ficou num hotel ao lado da minha casa. Quando mudei para São Paulo no início de 2022, ele me acolheu aqui e me apresentou para seus amigos, ele tem sido um grande amigo. Moramos perto também. A ideia inicial era fazer o show com o Panke, mas percebemos que eu morando em São Paulo e ele em Curitiba seria meio difícil de coordenar as agendas. Comendo um espetinho, perguntei ao Paulo se ele topava, e na hora ele topou. Conversando sobre, chegamos a conclusão que o ideal para o show seria um trio. O nome da Tati veio na hora. O Paulo é um bruxo e a adaptação dos arranjos ficou fantástica. Obra dele. Vontade de gravar essa versão paralela do “Dispopia”.

Quem ouve a sua fase no Bonde do Rolê e compara com o que você fez no Madrid e depois nos seus discos solo pode até pensar que não é a mesma pessoa cantando, compondo e tocando. Usar o nome Marina Gasolina é uma forma de costurar todas essas facetas diferentes ou você não dá muita importância para isso?
É. Até porque eu detesto esse nome Marina Gasolina. Mas é meio quem sou. Tudo isso aí e mais um pouco. Um pouco menos também. Bem menos (risos). Já quis trocar o nome, mas é tão complicado e tenho preguiça. Sempre tive banda com nome ideia fraca. E vai continuar assim. Uma vez conheci uma menina em Curitiba que virou para mim e disse “nossa, achava que você era quatro pessoas diferentes: a Marina do bordado, a Marina professora, a Marina do Bonde e das tretas e a Marina do Madrid”. Eu só tive o privilégio de fazer muita coisa na vida. Só isso.

Em janeiro de 2022 você lançou “Mira” pelo Madrid e “Vidadulta” em outubro junto com o Adriano Cintra. Vocês têm planos de lançar mais músicas juntos ou reativar o Madrid?
Sim. A gente tá com novidades. Janeiro acho que já vamos lançar uma nova do Madrid. São Paulo me engoliu esse ano, esse disco, o Adri com o “Fogo Fera”, mas a gente tem feito umas coisas sim. Umas músicas bem bonitas.

Quais os próximos passos? O que esperar da Marina Gasolina depois de “Dispopia”?
Gravando com o Adri, é sempre um grande prazer fazer as coisas com ele. A gente não só trabalha bem juntos, a gente se gosta muito. Uma das coisas que eu mais gosto de fazer no finde é andar loucamente por aí com o Adri. Eu, Paulo Beto e Tati Meyer estamos tramando umas coisas juntos também 🙂 Aguardem!

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Entrevista: Papangu une prog, sludge metal e literatura nordestina no disco “Holoceno”

*Matéria originalmente publicada no site Scream & Yell.
Imagine o seguinte enredo: um cangaceiro tem uma premonição ruim durante um sonho e tenta alterar seu futuro na base da matança. Porém, ao perceber que cada morte piora a própria situação e a do planeta em que vive, ele decide vender a alma ao demônio para tentar impedir o apocalipse. Esta bem poderia ser a sinopse de uma obra perdida de João Cabral de Melo Neto, mas na verdade é o conceito por trás de “Holoceno” (2021), o disco de estreia do quarteto paraibano Papangu.

Formada por Marco Mayer (baixo, synth e voz), Hector Ruslan (guitarra e voz), Raí Accioly (guitarra, voz) e Nichollas Jaques (bateria e voz), a banda de João Pessoa lançou no final de junho seu primeiro álbum, após sete anos de maturação. Ao longo de 45 minutos, o grupo mostra em sete faixas um sludge metal semelhante aos momentos mais agressivos do Mastodon, com inserções que fazem jus à fase setentista do King Crimson e uma forte influência de zeuhl – mistura de rock progressivo, jazz e música clássica cunhada pelos franceses do Magma –, tudo isso com letras em português, elementos de literatura modernista do Nordeste e de ‘escatologia ecológica’ (o estudo das coisas que devem acontecer no final dos tempos, com ênfase no meio ambiente).

Um caldeirão de referências a princípio tão diferentes poderia mais confundir do que entreter, mas o efeito foi justamente o contrário; apesar de ainda não ter furado a bolha do underground, “Holoceno” tem despertado a atenção de ouvintes fora do Brasil e arrancado elogios de fóruns e sites estrangeiros ligados a rock progressivo, metal experimental e música alternativa como Metal Storm, Prog Archives e TrebleZine. E esse interesse é chancelado também pelas participações ilustres do baterista Torstein Lofthus (membro de conjuntos como Shining e Elephant9), Benjamin Mekki Widerøe (saxofonista da banda norueguesa Seven Impale), Uaná Barreto (músico paraibano de formação clássica), e Luís Souto Maior nas gravações.

Em entrevista por e-mail ao Scream & Yell, a Papangu conta mais sobre a formação da banda, o processo e o conceito que deu origem a “Holoceno”. Confira abaixo o lyric video de “Bacia das Almas” e o papo com o grupo.

Primeiramente: como foi que os membros da Papangu se conheceram?
É engraçado porque todos nós somos amigos de longa data, e nossas histórias se cruzam em pontos distintos porém conexos. Todos éramos aquele tipo de moleque roqueiro e nerd, então com pouca idade já estávamos focados em aprender a tocar instrumentos e montar bandas de rock. Hector (guitarra e voz) e Raí (guitarra e voz) se conheceram estudando na mesma escola, ainda no ensino fundamental. Marco (baixo, synth e voz) e Raí se conheceram através de uma viagem em comum que fizeram ainda quando adolescentes. Marco pôs um anúncio de venda de uma guitarra nos classificados de um jornal local que chamou a atenção de Hector, e assim eles se conheceram. Marco e Nichollas (bateria) se conheceram após uma amiga em comum fazer a ponte num festival de música em 2012. A banda em si começou quando Hector e Marco procuraram montar uma banda de stoner rock/metal. Marco sugeriu que Nichollas fosse o baterista e, após um primeiro ensaio em que tocamos apenas covers e umas jams, a banda nasceu. Logo nas primeiras tentativas de composição própria, o som da banda foi se distanciando do stoner rock e se aproximando de um som mais progressivo e experimental, e logo veio a ideia de acrescentar elementos de música regional nordestina no caldeirão de influências. Ainda como trio, fizemos alguns shows na cidade, mas a vontade de expandir o leque sonoro nos incentivou a buscar um segundo guitarrista, e Raí foi a escolha natural.

A banda existe desde 2012, mas o primeiro álbum só foi lançado agora em 2021 (depois de um período de 7 anos sendo trabalhado). Vocês conseguem resumir o que aconteceu com o grupo ao longo desse tempo todo?
O primeiro grande desafio foi aprender a compor. Com exceção de Raí, que já havia gravado um EP de thrash metal com uma banda que fundou no Canadá, nenhum de nós possuía experiência prévia com música autoral. A criação de estruturas musicais mais complexas e coesas, melodias vocais e letras foi algo que nós precisamos estudar e praticar bastante ao longo desse tempo. Algumas das músicas do disco já estavam mais ou menos prontas em 2014, mas foram ajustadas ao longo dos anos com a experiência que adquirimos em composição. O segundo grande desafio foi aprender a utilizar ferramentas de gravação, montando nossos pequenos estúdios caseiros para que pudéssemos testar ideias e estruturar as composições de forma mais dinâmica e organizada. A partir do momento que sentimos que estávamos prontos para materializar o som de Papangu, com a segurança de que as pessoas poderiam ouvir nossas músicas exatamente como queríamos que soasse, decidimos entrar em estúdio para gravar “Holoceno”.

O disco traz o Torstein Lofthus como baterista. Como aconteceu a participação de um instrumentista tão influente logo no primeiro disco de vocês?
Bem, a participação de Torstein decorreu de uma sequência de fatos até que um tanto preocupantes, mas que se encerraram na feliz inclusão dele em nosso disco. Nós iniciamos a gravação do material em meados de julho de 2019. Em razão de nossos empregos e orçamento, nós não conseguimos passar um longo tempo enfurnados dentro do estúdio para finalizar as gravações, razão pela qual fizemos seis sessões de meio expediente entre julho e novembro de 2019. A finalização da gravação das cordas, vozes e teclas coincidiu com a conclusão do mestrado de Nichollas, e nós só conseguimos marcar o início das gravações de bateria em março de 2020. Foi aí que a pandemia atingiu o Brasil com força total e acabou destruindo todo o nosso cronograma. Ocorre que Marco conhecera Torstein em uma viagem que fez à Noruega ainda em 2019, em janeiro, para ver três shows da banda norueguesa Elephant9, que vieram a ser lançados como o disco ao vivo “Psychedelic Backfire”. Fanboy do jeito que é, ele foi convidado para entrar no backstage e manteve contato com Torstein desde então. Frente às dificuldades em gravar Nichollas no Brasil, perguntamos a Torstein se ele toparia gravar as baterias de “Holoceno” na Noruega, que estava em uma situação epidemiológica bem melhor do que a do Brasil. Quando soubemos do aceite, ficamos muito animados e ansiosos. O cara é sem dúvida um dos melhores bateristas do mundo e ouvi-lo em ação em “Holoceno” é verdadeiramente emocionante pra gente.

E as participações de Uaná Barreto, Benjamin Mekki Widerøe e Luís Souto Maior, como surgiram?
Uaná é um músico daqui de João Pessoa que tanto tem formação clássica quanto profundo conhecimento de música brasileira e de jazz. Na hora de gravar “Água Branca”, queríamos usar o Minimoog do estúdio para um solo de sintetizador, e surgiu na cabeça a ideia de chamar Uaná para dar um pulinho rápido na gravação antes de ir tocar num show. Ele escutou “Água Branca” uma única vez e tocou fogo em tudo num take só. Mesmo com todos da banda impressionados, ele pediu um segundo take, já que o primeiro fora só para aquecer, e é esse o solo que entrou no disco. O cara é incrível. A gente ficou tão animado que pedimos para repetir o procedimento em “Bacia das Almas”. Benjamin toca sax numa banda norueguesa chamada Seven Impale. Marco sugeriu incluir saxofone para dar uma colorida em “Lobisomem” e nós adoramos a ideia. Quando estávamos prestes a mixar, decidimos pedir o repeteco da contribuição na faixa-título, e o resultado é esse final maravilhoso. Pouco antes de mandar os arquivos para mixagem, falamos com Luís Souto Maior, que é primo de Marco e um expert em synths analógicos, e pedimos para que incrementasse a introdução da faixa-título com algumas faixas de Prophet-6. Achamos que aquela seção pedia essa textura um tanto setentista.

Procurando pela definição de ‘Papangu’, encontrei algumas versões. Questionando uma amiga cearense, a primeira explicação que ela me deu foi sobre as pessoas que usam máscaras de monstros e demônios no carnaval nordestino. Qual é a inspiração real para a banda?
Hector deu nome à banda. A definição de Papangu que batiza nosso grupo vem justamente da ideia de uma criatura folclórica assustadora do Nordeste brasileiro. O Papangu é uma figura típica do carnaval da cidade de Bezerros, no interior de Pernambuco. São pessoas que se vestem como monstros e saem às ruas para pregar peças. O imaginário folclórico nordestino é uma das maiores influências estéticas da nossa banda.

A Papangu lembra algo da agressividade do Mastodon com algo de King Crimson e o zeuhl inventado pelo Magma. Além desses nomes, o que acham que influencia vocês e não estaria tão aparente no som que fazem?
Os quatro membros da banda possuem bagagens musicais distintas e que não necessariamente são refletidas no som de Papangu a todo momento. Raí é um grande fã de thrash metal, Hector é vidrado em punk e hardcore, Nichollas já tocou com bandas de death metal locais e Marco, além de uma enciclopédia do rock progressivo, curte um bom city pop japonês, por exemplo. A linguagem da nossa banda, contudo, é um ponto de confluência entre todos nós. A mistura de sludge metal, rock progressivo, zeuhl e música nordestina é algo que todos amamos. O objetivo sempre foi fazer música autoral com a nossa cara, algo que nos desse prazer e que pudéssemos chamar de nosso.

A banda se diz influenciada também pela literatura modernista do Nordeste e pela ‘escatologia ecológica’. Pelo que pesquisei e entendi, imagino que o conceito do disco dialoga com ambas as ideias trazendo um cangaceiro (personagem característico da região nordeste) que, ao tentar mudar seu destino, acidentalmente causa um desastre ambiental (daí a noção de ‘escatologia ecológica’). Seria isso?
A narrativa, em resumo, trata de um cangaceiro que se depara com um mau agouro num sonho e tenta mudar o futuro na base da matança. Quando ele percebe que cada morte matada piora a situação, o cangaceiro vende a alma para o Cão achando que vai conseguir impedir o fim do mundo de ocorrer. Além do imaginário folclórico popular do Nordeste, nós somos influenciados por obras como “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto, a poesia de Ariano Suassuna e de Augusto dos Anjos, e pela arte plástica de Flávio Tavares. É importante, ainda que não essencial para ouvir o disco, frisar que “Holoceno” é um disco conceitual e que cada uma de suas músicas funciona como um capítulo de um livro. A narrativa se assemelha ao realismo mágico, que busca, através de elementos fantásticos, contar histórias que são bem reais e relacionáveis para nós. A fome do retirante que foge da seca e do desastre ambiental, o conflito entre a oligarquia detentora de terras e aqueles que verdadeiramente vivem dela. “Holoceno” contém mensagens políticas que, ainda que não cantadas através de slogans e palavras de ordem, estão bem presentes.
A arte da capa (muito boa por sinal) é assinada por Ars Moriendee, pseudônimo de Pedro Felipe, um artista e músico de Belo Horizonte (que também já fez capas para outros projetos musicais). Como foi a criação dessa arte?
A capa de “Holoceno”, encomendada por nós, é realmente fantástica e somos muito gratos ao Pedro por isso. Falamos com o artista sobre nossas aspirações para o disco e, em seguida, enviamos algumas demos. A arte de Ars Moriendee complementa muito bem a estética sonora e visual que nós buscamos implementar em “Holoceno”, e a forma como ele interpretou tudo serve como realce de seu talento.

A pandemia atrapalhou vocês na gravação do “Holoceno” de alguma forma? Ou a estratégia de divulgação/lançamento?
Como mencionamos, a pandemia atrapalhou o cronograma das gravações da bateria, mas as dificuldades não se limitaram a apenas isso. Com o fechamento de estúdios em nossa cidade, nós tivemos que fazer alguns poucos overdubs em nossos estúdios caseiros. A pandemia também afetou diretamente a mixagem. Como nós não nos sentíamos seguros em estar no estúdio presencialmente, nós acabamos iniciando o processo com um engenheiro de som local (não creditado no disco) e podemos dizer que tivemos problemas de todas as ordens com ele. Por conta disso, rompemos o contrato com ele e buscamos alternativas. A primeira opção foi um engenheiro de som nos Estados Unidos. Embora o trabalho dele fosse excepcional, a expertise dele não se adaptou bem à estética que nós procurávamos. Em seguida, mandamos o disco para Jørgen, o engenheiro responsável pela gravação da bateria de Torstein, que fez um excelente trabalho ao conseguir traduzir o som que a banda queria expressar com as músicas. Se tivéssemos mais experiência com produção musical, nós teríamos procurado Jørgen já no início e economizado bastante tempo e paciência.

Vocês tem algum plano de fazer shows ou turnês com a mesma formação que gravou o disco?
Planejamos fazer turnê sim, mas acreditamos que em shows no Brasil não conseguiríamos contar com a participação de Torstein ou Benjamin. Em uma eventual turnê europeia, faremos de tudo para trazer o sax de Benjamin e juntar as forças de Nichollas e Torstein no palco.

Além do lyric video de “Bacia das Almas”, vocês têm mais algum material relacionado ao “Holoceno” em mente para lançar?
Temos, mas não daremos spoilers agora.

E quais são os próximos planos da Papangu?
Bem, temos algumas composições que ficaram fora de “Holoceno” pois não casavam com a estética e a narrativa do disco. Essas composições já tinham um conceito maior em mente e estão aos poucos se somando a outras idéias, e já vislumbramos a espinha dorsal do próximo disco. A gente não quer que o galo cante antes do amanhecer, mas já deixamos claro que pretendemos fazer algumas coisas diferentes no próximo álbum. A ideia é gravar a maior parte dos instrumentos ao vivo no estúdio e usar boa parte do tempo para experimentar coisas novas que possam incrementar as músicas. Também pensamos em trazer a participação de um produtor experiente que vai poder nos oferecer um norte mais claro, respeitando a nossa visão artística.